quarta-feira, 5 de junho de 2013

Terapia 2 (com cortes)



Segunda Sessão: Meu encontro com Lygia Clark

O incentivo para ver aquela exposição foi dele. Ele havia ido na outra semana com uma amiga que, se estivesse tudo bem, por certo teria ciúmes. Fui sozinha, antes de alguma reunião de domingo, que estava sem vontade nenhuma de ir. Cheguei tímida, tentei pegar um folder, havia acabado. Adoro guardar os papéis das exposições que vou. Guardo todos, como se me preenchessem, como se validassem minha ida. Alguns são tão bonitos e fico só pensando no que poderiam se transformar. Tenho algumas manias de guardar. Guardo algumas etiquetas bonitas das roupas que compro. Fico pensando que o capitalismo produz tantas coisas, tão bonitas, tão vazias, tão... descartáveis. Vou montar um quadro com as etiquetas, brilhantes, coloridas, desenhadas. Com os lápis colecionados também. Tenho uma caixa cheia, separados pelas borrachinhas, apontados cuidadosamente um por um. Ficarão no escritório, organizados por ordem das cores, dentro de uma caixinha com vidro, fundo branco. Eu sempre achei que tivesse boas ideias de decoração, herança da minha mãe, está no sangue da família.

Cheguei na exposição e topei com alguns quadros que não gostei muito de cara. Experimentos. Quando são essencialmente experimentais de nada valem, mas a pessoa morre, fica famosa, e todos os seus rascunhos viram obra de arte, elevando a obra ao sobrenatural. O artista vira um ser divino que não erra, que não rabisca. Logo na entrada havia a linha do tempo, mais obras experimentais. Fingi ler a parte em inglês, pra me passar de turista. Na realidade, me sentia uma turista, uma estrangeira em mim mesma. Os turistas têm carta branca para andarem sozinhos. Estão livres, soltos, flanando por uma cidade desconhecida, conhecendo pessoas. Se descolam da paisagem rotineira, não fazem parte dali. Olhei o experimento (um chão de imã, com sapatos de imã, que te levariam randomicamente para passear) e pensei que não fosse para mim. Estava tímida e não tive coragem de tirar meus sapatos para participar do projeto. Nem tinha meias... Subi para os outros andares e entrei numa sala em que passava um filme. Era em português, mas havia legenda em inglês. Poderia seguir com meu disfarce.

Foi ali que a mágica começou. Me sensibilizei com o preto e branco do filme, com a ideia da sensibilização. Mas tudo era muito hippie e senti que, novamente, não me encaixava ali. Não tenho essa perfeição natural, de acordar com o cabelo bom, com a perna lisa. Ou não aceito o meu cabelo ruim, meus pelos. Tenho tantos incômodos com meu próprio corpo... Sei que me falta libertação. Me falta aceitação. Perceber o que tenho em mim e gostar... De-fora-pra-dentro-de-dentro-pra-fora. Tenho a consciência que sou eu quem pinto meu espelho, mas tendo a ser bem realista em alguns aspectos. (...) Por sinal, não consigo me sentir a vontade com frequência. Na verdade, toda essa extroversão me soa um tanto falsa. Os vernizes que me foram construídos, os muros que levantei, são parte de mim também. Essa minha imagem exposta diariamente, o sorriso no rosto, também fazem parte de mim. Isso não me faz menos eu. Mas pesa. Sinto que se libertasse mais o meu peso, voaria mais alto. Mas ficaria tão... oca.

O verdadeiro insight aconteceu, porém, com as caixinhas de fósforo. Nunca vou esquecê-las. Estavam lá, as caixinhas, todas grudadas e pintadas de vermelho, outras de azul, outras de amarelo. Me senti a verdadeira artista, verti em lágrimas. Foi um momento de elevação única. Nem todos os elogios do mundo me fariam sentir como naquele instante. Eu, que havia tantas vezes pensado em caixinhas de fósforo grudadas, coloridas. Eu, que havia tantas vezes pensado naqueles mesmos experimentos. Tive um segundo de compreensão plena que a vida é feita de escolhas. Poderia ter escolhido a arte, um curso de artes plásticas, as experimentações com as caixinhas, as etiquetas, a caixa com lápis. Mas resolvi guardá-los na gaveta, todos organizados sistematicamente para, quando tiver um tempo de férias e casa própria, pensar em realizá-los. Ele sempre brincava comigo: “sua casa, para ter tudo o que você quer, vai precisar ter trinta cômodos”. São muitas minhas ideias. Mas ficam todas guardadas, travadas na garganta. Ou saem num tom leve de brincadeira, como se fosse um sonho etéreo, mentirinha qualquer.

Aquelas caixinhas de fósforo foram a confirmação da minha efêmera genialidade. Não só minha, mas do mundo! E não sou eu quem sempre acreditei na genialidade humana? Sempre defendi que todo o ser humano, todo indivíduo, tinha seu próprio dom, sua especificidade. Era daí que as paixões nasciam. De uma vírgula de diferença... Se conhecesse todos no mundo, por certo me apaixonaria pelo mundo. Mas as pessoas se escondem por trás daquilo que é comum e ficam estrangeiras de si mesmo, vestindo uma capa de normalidade grossa, feito neoprene, esquecendo suas vírgulas, suas covinhas escondidas, suas imperfeições. E quem culpar? Nesse momento chorei por minhas escolhas que foram feitas de forma tão inconsciente, mas será? Aquelas caixinhas de fósforos me acordaram daquela sensação etérea da vida. Me deram a certeza de que, se quisesse ser Ligia Clark, bastava um pouco de cola bastão e consciência. Mais do que consciência, oportunidade. Ou coragem. Quando se tem uma noção sistemática de mundo, fica difícil acreditar em escolhas reais. Sentimo-nos como fantoches que vivem para se integrar a essa grande engrenagem.

Mas isso soa tão repetitivo. Sempre a mesma busca de viver em plena consciência, de traçar seu próprio caminho. Soa, além de tudo, egoísta, pelego. Soa com aquela leveza que julgo falsa, do não preocupar-se com ninguém, do aproveitar a vida a qualquer custo. A vida não é tão simples assim... E tendo a acreditar – em lapsos de risos – que ela o é, obtendo, assim, meus próprios subterfúgios, minhas próprias justificativas para continuar agindo de uma forma moralmente (e minha moral, como já disse em outras sessões, é cristã) inaceitável. Mas, como dizia aquela música? Nem todo beijo é pecado, nem toda culpa é cristã. Talvez me falte forró, samba e verde. Talvez me falte mais consciência  mais coragem. Essa cidade toda concreta me cerca e sufoca. E sufoca a todos, em todos os lugares do mundo. Talvez me falte ignorância. E leveza.


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