sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



Hoje pensei que fosse morrer.
Talvez pelas tantas ligações não atendidas
de diversos números conhecidos
das amigas antigas que telefonam espaçadamente
para me contar as novidades

Hoje pensei que fosse morrer.
Pelo tetraplégico que vi, de terno, no vagão de trem,
que arrumando seus óculos com o pouco de braço que lhe cabia,
olhou seu celular preso ao braço da cadeira de rodas.

Hoje pensei que fosse morrer.
Talvez pela ligação daquele que havia esquecido,
ou por sua singela mensagem,
agradecendo-me por ter lhe mudado a vida.

Hoje pensei que fosse morrer.
No dia do meu primeiro salário,
no último dia do ano,
ora, e poderia ser diferente?

Hoje pensei que fosse morrer.
Pelo medo que me tomou as veias
pelo pânico que me arrepiou a pele
pelo baque que meu levou o suspiro.

Hoje pensei que fosse morrer.
E pensei mesmo sem sentir frio em pleno sol,
ou calor em meio a neve,
pois o clima era ameno e no ameno não senti.

Hoje pensei que fosse morrer.
Hoje pensei que fosse morrer.
E o pavor dominou meu corpo.
E me senti, diante do mundo, sozinha.
E li a manchete que dizia:
"Faleceu, sabendo disso, uma menina"

E que menina o era?
A dos olhos azuis?
A estagiária?
A do ônibus ou metrô?
A do facebook?
A da Mooca?
Uma mulher?

Hoje pensei que fosse morrer
e percebi que em meio a tanta vida,
nos encontramos perdidos.
Talvez nas palavras.
(estas que surgem prontas na rápida escrita do metrô)
Talvez na solidão.

E precisei amar para entender que por fim viveria.


M. C. Escher - Eye


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Epitáfio nº 30


Libertou-se, enfim, do corpo que lhe pesava.
E sua alma dominou aqueles que lhe rodearam.
Deixou, silencioso, um recado aos pés de ouvido
"vivam a arte do amor"
ou algo assim que nos coubesse.
Mesmo sem palavras, inspirou-me,
tornando muitas, das que me brotam,
sementes dele.
A flor maior, porém, foi a esperança,
confirmada pelos olhares, gestos, abraços,
revelando, firmemente, que nessa terra
estamos todos juntos.


La Danse de Henri Matisse

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010


Estava tão cheia que era como oca. Não tinha espaço para o barulho do chacoalhar. Estava vedada, lotada de sentimentos de duas, três, quatro vidas. Para ela aquilo era viver. Como se a beliscassem a todo instante lembrando que estava lá. Não se deixava cair na inércia do morno, do regulamentado e buscava o que lhe cutucasse para um eterno acordar. E vivia.


Chegou um tempo, porém, que se viu tributável. As décadas passaram sem que percebesse e o sono veio dominar-lhe os pensamentos. Eram 10 da manhã e sabia que aquela perda era de vida. Questionava se era o fim, o início de um ciclo eterno, o abafar de sua cor. Viu-se esvaziar aos poucos. Estava tão oca que era como cheia. Tinha espaço para cinco, seis, sete vidas que analisava friamente com marca-textos e etiquetas, catalogando em blocos coloridos. E seguia.



M. C. Escher - Three Spheres II