domingo, 8 de maio de 2011

Despejo III


A vida me lembrou de repente da minha humanidade. Me trouxe a sombra do vale, o escuro da noite. Ainda bem, oras, para que eu possa amanhã enxergar novamente a nuvem clara na qual eu pairava flutuando. E se ficasse assim voando ia ficar tão distante daquilo que é, pensando como plebéia que virou princesa, contos de fadas, foi sim. Mas a vida é toda recorta, é toda picotada e ninguém tem tudo ou o tudo tem ninguém. Tem o que nada tem e tem o que tudo tem. Não tem como fazer média, somar e dividir por dois pra ficar igualzinho assim, ou compensado. É tudo desconcertado mesmo, meio desafinado (o que mais gosto na orquestra é ver os violinos se afinando no começo. A harmonia é tão grande que a música que vem depois só faz sentido se aquele início, aquela concordância dos instrumentos, se faz presente, quase que de maneira silenciosa, discreta. Sem isso, não tem Beethoven que o valha pra ornar com as notas todas. O som harmonia me acalma, pois daí entendo que tudo vai ficar bem... Vai ficar tudo bem e a música vai tocar maravilhosamente como é, numa potência da arte humana que aterroriza diante da mediocridade diária da vida) e repartido. E quando vem o soco da realidade que te traz pra terra, com cara na lama e tudo, mas dessas baratinhas que nem fazem bem pra pele, você vê que o cinco bola não existe, mas um zero bem vermelho. O redondinho é tudo invenção. Não tem meia fome, não tem meio pobre, não tem meia vida. Tem ou não tem. É ou não é. E a gente só percebe quando vai lá atrás e fica três horas e meia esperando, esperando, esperando e... qual o nome do ônibus mesmo? Ou quando a gente vê criança da rua brincando com caco. Menino! E se corta? Corta não, tia, a gente toma cuidado. Dá pra cortar o pão duro pra comer, a pele dura da barriga, sabe como é... E a humanidade nos pega assim, de repente, e nos derruba do cavalo branco, ou do sofá das 16h, depois do café com bolachinhas. A vida estica o dedinho e nos toca, toca afinando o desconcerto que virá, a verdadeira graça que tocará, uma verdadeira (e talvez, medíocre) humanidade.


African Sonata - Vladimir Kush