sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



Hoje pensei que fosse morrer.
Talvez pelas tantas ligações não atendidas
de diversos números conhecidos
das amigas antigas que telefonam espaçadamente
para me contar as novidades

Hoje pensei que fosse morrer.
Pelo tetraplégico que vi, de terno, no vagão de trem,
que arrumando seus óculos com o pouco de braço que lhe cabia,
olhou seu celular preso ao braço da cadeira de rodas.

Hoje pensei que fosse morrer.
Talvez pela ligação daquele que havia esquecido,
ou por sua singela mensagem,
agradecendo-me por ter lhe mudado a vida.

Hoje pensei que fosse morrer.
No dia do meu primeiro salário,
no último dia do ano,
ora, e poderia ser diferente?

Hoje pensei que fosse morrer.
Pelo medo que me tomou as veias
pelo pânico que me arrepiou a pele
pelo baque que meu levou o suspiro.

Hoje pensei que fosse morrer.
E pensei mesmo sem sentir frio em pleno sol,
ou calor em meio a neve,
pois o clima era ameno e no ameno não senti.

Hoje pensei que fosse morrer.
Hoje pensei que fosse morrer.
E o pavor dominou meu corpo.
E me senti, diante do mundo, sozinha.
E li a manchete que dizia:
"Faleceu, sabendo disso, uma menina"

E que menina o era?
A dos olhos azuis?
A estagiária?
A do ônibus ou metrô?
A do facebook?
A da Mooca?
Uma mulher?

Hoje pensei que fosse morrer
e percebi que em meio a tanta vida,
nos encontramos perdidos.
Talvez nas palavras.
(estas que surgem prontas na rápida escrita do metrô)
Talvez na solidão.

E precisei amar para entender que por fim viveria.


M. C. Escher - Eye


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Epitáfio nº 30


Libertou-se, enfim, do corpo que lhe pesava.
E sua alma dominou aqueles que lhe rodearam.
Deixou, silencioso, um recado aos pés de ouvido
"vivam a arte do amor"
ou algo assim que nos coubesse.
Mesmo sem palavras, inspirou-me,
tornando muitas, das que me brotam,
sementes dele.
A flor maior, porém, foi a esperança,
confirmada pelos olhares, gestos, abraços,
revelando, firmemente, que nessa terra
estamos todos juntos.


La Danse de Henri Matisse

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010


Estava tão cheia que era como oca. Não tinha espaço para o barulho do chacoalhar. Estava vedada, lotada de sentimentos de duas, três, quatro vidas. Para ela aquilo era viver. Como se a beliscassem a todo instante lembrando que estava lá. Não se deixava cair na inércia do morno, do regulamentado e buscava o que lhe cutucasse para um eterno acordar. E vivia.


Chegou um tempo, porém, que se viu tributável. As décadas passaram sem que percebesse e o sono veio dominar-lhe os pensamentos. Eram 10 da manhã e sabia que aquela perda era de vida. Questionava se era o fim, o início de um ciclo eterno, o abafar de sua cor. Viu-se esvaziar aos poucos. Estava tão oca que era como cheia. Tinha espaço para cinco, seis, sete vidas que analisava friamente com marca-textos e etiquetas, catalogando em blocos coloridos. E seguia.



M. C. Escher - Three Spheres II

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Colagens


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A tão condenável fuga me atrai como luz, o inseto. A sensação de caridade desaparece em frações tão curtas que a luz se tornou estática diante da repulsiva sensação do nada ser diante daquilo que se é.
Amar o próximo. Amo-o quando não me atinge de maneira tão certeira e aguda, como faca em carne fresca. Com o amor-próprio ferido e toda minha (até então discutida) vaidade escorrida pelo buraco escancarado de pouca estima talhado com tanto esmero. A falta de vernáculo não me proporciona suficientes doses de bem-estar, dose esta que, como uma droga, vicia, e após seu fim derruba, com um soco forte e real, as ilusões formadas de um intelecto tão imaturo. Ajoelhada, recolho os cacos daquilo que um dia sonhei ser, e enxergo o reflexo do medo e a podridão de tudo que enunciei e ouvi, do toque doce e do abraço ensinado.
O desprendimento de todo tipo de mérito se faz como inseto em casca velha. Covarde, reapareço e me reergo diante de toda imensidão de aplausos. Não os mereço e sou logo comparada com furtivos olhares de pena.

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Num certo momento o sentido se extingue
como uma nuvem que se esvai...
Desvanece.
Todas as intenções,
ilusórias ou não,
ilustres ou não,
anulam-se em tristeza,
causando um mal-estar,
um enjôo,
por tudo aquilo que não foi
e que foi e que poderia ser.
A inércia assume o poder
e continuamos procurando
um fim.
(21 de Outubro de 2008)

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Odeio esse abafado ar de angústia eterna.
Antes assumir o desagrado com o mundo como o velho safado
que camuflar usando um sorriso civilizatório
(de dentes bem brancos,
cor de nata,
corroídos por ácido
até a invenção de um café fluoretado)
Escondendo, assassinamos aos poucos
a aflição que nos dá vida.
Cabisbaixos seguimos,
e apertamos em guardanapos,
bordas de livro,
papéis amarelados,
palavras despejadas para consolo
daquilo que jamais deveria ser consolado.
(4 de Setembro de 2008)

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E se fragmento-me em instantes, estes não têm volta. Então me perco aos poucos, a cada baque de razão ou irracionalidade que me apresentam um outro lado, uma outra face,
um novo sentimento e mais ilusões,
imaginações
palavra que relativiza até a relatividade.
E ainda não me decidi se acredito na cabeça
(e daí se abrem possibilidades)
ou nos olhos.
Mas sou tão míope
e talvez tão louca
(segundo meu histórico familiar)
que prefiro não acreditar em nada
e sigo assim
vivendo,
morrendo,
sentindo...
...sofrendo.
(31 de Agosto de 2008)

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Paul Klee - Burg und Sonne

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Carta de Buenos Aires 2010



Carta de Buenos Aires, Reunião Internacional da Casa Warat.


Buenos Aires, una noche fría a finales de octubre de 2010.


Carta literária do Encontro Anual da Casa Warat, ocorrido nos findos dias de outubro, do ano de 2010 (dois mil e dez), en “Mi Buenos Aires, tierra florida”. A reunião começou um dia após o Cabaré Macunaíma, realizado nos arredores de Maipú. Na capital argentina, o frio era marcante e o vento deixava ainda mais gélidas as noites ébrias. Na envolvente mistura de calor humano e frio porteño, ainda inebriados pela noite em Cabaré, deu-se início a reunião.

Estában Isabela, con su hermoso pelo rubio, Leilane, con sus belos ojos pintados, Mariana con su pelo rojo claro y sus 19 años, y Jaqueline, con su pelo nero, como los de Paula. Quizás era de ellas que hablava Chico Buarque quando escribió la canción “João e Maria” ("a noiva do caubói era você além das outras três…"). Ah si, estában también los chicos: Levy, con su buen humor y su abrazo colectivo, André, con su barba, sus 20 años y su sensibilidad, Eduardo, con sus rizos pero sin su sombrero porteño, Leopoldo, con el cuidado con los otros que solo él lo tiene, argentino que habla palabras que todos las compreendem. Y claro, estaba nuestro queridíssimo Luis: lleno de energia, de projectos, com sus ideas increíbles, su poder de congregar personas y de instaurar una atmosfera mágica al su rededor. Brindava a todos palavras estéticas y afectivas que, como siempre, nos encantavam y nos nutrían a todos.

O local escolhido: El Gato Viejo. No meio do improvável e do impossível, fez-se um restaurante em delírio na antigua estación de tren, no atelier de Carlos Regazzoni. Levy pede uma garrafa de vinho, quer apresentar a todos “Angelica Zapata”. Alguns preferem refrigerante, como Isa, Leilane e Mariana. Antes de chegarem os pratos, Leopoldo lança a primeira pergunta para instigar a reflexão: ¿qué nos une?

Jaqueline logo pega papel, pedacinhos de uma cartolina amarela, cheirando a tabaco, anteriormente cortados, e distribui para todos que estão na mesa, para que possam escrever suas reflexões. As respostas, que saem de forma fragmentada, complementam-se. Leopoldo lê os bilhetes escritos em espanhol, Jaqueline aqueles em português.

A resposta era polifônica, com argentinos hablando português y brasileños falando em espanhol, mas parecia ressoar uma só voz. O que nos une? La vontad de construir un mondo en donde cada uno es un encontro con los otros. Nos une la búsqueda. Pela realização livre do espírito. Pela intersubjetividade perdida na modernidade. Por uma nova sociedade, mais humana e menos castradora. Por puertas hacia nuevos mundos. Por afinar sensibilidades. Pela despinguinização dos espíritos dos estudantes e por um reconhecimento que não precisa de mitos, teorias, hermenêutica e lei para se realizar. Nos une el deseo de transformar. A crença no poder das alterações moleculares. Nos une la afectividad y la necessidad de construir un mundo diferente.

Nos une a recusa da desumanização e a esperança de mostrar que é possível viver afetivamente com os outros. Nos une a leveza das relações que se constituem como um respeitoso entre-nós. Nos une a inquietação perante o mundo e a tentativa constante para melhorá-lo e nos melhorar como seres humanos sensíveis. Nos une el interactuar entre nosostros para enriquecernos en nuestros espíritos para sermos mejores personas y brindarnos a nuestros semejantes.

Nos une a busca do entendimento de nós mesmos a partir do Outro e a busca do entendimento do Outro a partir de nós mesmos. Tomar o Outro a partir de nós mesmos. O Outro como uma extensão do Eu. A exsurgência do entre. A aurora da sensibilidade. A nascente do sensível. Nos une la tentación de unir/nos en una subjetividad que nos pertenezca para sustener/nos. No nos une el amor sinó el espanto (Borges). Nos une a vontade de um pluri-verso de significações voltadas sempre ao novo, à constante transformação. Nos une a sensibilidade, sabermos que não estamos sós, mas juntos pela construção da vida carnavalizada e repleta de sentimento de amor.

Nos une a tentativa de fazer triunfar a alegria sobre a tristeza, a pulsão de vida em um mundo em que prevalece a pulsão de morte. Nos unimos para compreender e transformar a pedagogia, enquanto momento de descobrir e redescobrir a nós mesmos e o Outro, numa perspectiva criativa, emancipatória, amorosa, erótica e transformadora. Qué nos une es el sentimiento de querer ser no un “yo” o un “otro”, sinó un “entre”. Una relación, un devir.

Pausa. O primeiro prato chegou: peru, já passado por outras mesas e bocas, temperado com cenoura, café e chocolate. Regazzoni cria as receitas de forma espontânea e plástica. Era o prato frio, depois viriam os quentes. Warat elogia o vinho. André descobre que é de uma safra de 1995. Levy e André tiram foto com o vinho, que não é tomado em taças convencionais, mas em pequenos copos de vidro. Tudo era inesperado e surrealista, como tinha de ser. Leopoldo, entonces, hace la segunda pregunta: ¿qué nos molesta?

Nos molesta el poder, el paradigma racionalista, el robo de la sensibilidad. Nos molesta o desejo pelo consumo, o fazer-se no consumo. Os micro-fascismos. A reverência a tradições vazias, a estética da forma burocrática de destruição do eu pelo enquadramento a padrões, hábitos copiados, sonhos pasteurizados, vidas vazias e o hedonismo que não transcende a forma. Nos molesta a insensibilidade, a indiferença. O sentir-se sozinho em lugares cheios. Nos molesta a pressa com que vive, sem se prestar atenção ao que se sente e ao que o outro sente. Nos molesta a repressão do espírito em todas as sua manifestações.

Nos molesta a idéia de degraus invisíveis que nos afastam – pois paramos de nos ver como iguais, como humanos. Nos molestan las divisiones, las separaciones, las etiquetas. Nos molesta la falta del deseo para perseguir una passión que nos mueva el corazón. Nos molesta o uni-verso estático e imutável, o que não tem devir. A tentativa de transformar sentimento em racionalidade, a modernização que transforma humanos em objetos homogeneos e pasteurizados.

Nos molesta uma vida sem poética, sem sonho, sem imaginação, sem criatividade. Nos molesta el egoísmo, la falta de solidariedad. Nos molesta o imperativo da razão, uma razão fria, cartesiana, que nos amputou a sensibilidade, que nos anestesiou a todos.

Segunda pausa. O segundo prato chegou: em forma de pato, vindo direto da cozinha para nossa mesa, sem escala e sem escolha. Depois veio polvo e também javali. Levy acende o charuto. André, o cachimbo. Leilane, o cigarro. Bééééhhh… Em meio à fumaça dos sonhos e à voz inebriante da mulher mais divertida e fogosa do recinto, entovam-se cantos líricos y abrazos colectivos. As luzes apagadas incendiavam delírios cabaréticos. Havia muitas cores, nas esculturas, nas paredes da sala, nos olhares trocados, nos livros espalhados, nas cidades internas.

Un despliegue de sensasiones diarios que se desdoblaran y hablaran con figuras en lenguajes del amor. Eram velas que dançavam um samba infinito, em meio à cidade do tango. Era la sensasión de estar delante un mar totalmente desconocido de colores diversos y que permite percibir una línea en el horizonte, sin que sea possible identificar su inicio y tampoco su fin. Em Buenos Aires encontrou-se esse mar. Um delírio? Sólo para los que no creen en los devenires, para los que se quedan en la racionalidad hermetica, cerrada en si misma. Sólo para aquellos que no perciben que, si no hay un “entre”, entonces están solos y nada són.

Cartografamos sentimentos, devires em meio à noite estrelada. Sensasiones fuertes y lindas, de alteridad y fraternidad. Luces, musica, danza, poesia, abrazos, besos y emoción. Reconheceram-se, desde logo, pelo olhar. Aquilo não tinha fronteiras, a amizade. Nenhuma língua ou sotaque seria capaz de impedir o entendimento, e o sentimento. O encontro puro. Sutil. O “entre” que se formou. O olhar bastava. A vontade bastava. A alegria bastava, assim como o sentimento de vida. Estava vivo. Juntaram-se a nós Inês, Glória, Marta Gama, André Coppeti, Alexandre da Rosa, Albano Pepe. Nem todos fisicamente, mas a nós se uniam pelo sentimento, presença essa que é ainda mais vivaz.

Todos formaban un grán rizoma, em que se diluem as fronteiras entre o virtual e o real. E rapidamente construíram-se idéias de esperança. Não havia censuras e o acolhimento foi completo. Reinava, soberano, o apetite de mudar, de amar, de viver. Não poderia existir construção vazia em meio tão fecundo. Naqueles papeles amarillos despejaram-se desejos comuns, que todos compartilhavam sem saber, mas que podiam intuir, sentir. Verdadeiro encontro. Revolução molecular.

A cidade ainda chovava em luto, mas a alegria reinava absoluta na Casa que construía esperança. A Casa que não tem uma casa. Não tem porque não precisa ser física. Ela é em qualquer lugar, onde se estiver, onde se quiser. En qualquer lugar donde se creea en en poder transformador de la sensibilidad. Nossa casa é movil, é nômade. Ela dança em ritmo de samba. Dança tango, flamenco y mismo la musica gitana. É uma fusão de cores, de sons, paladares e sentidos. É pura sensibilidade e está sempre aberta para quien crea en la revolución de un abrazo. De um beso. Quien así creer, entenderá (sentirá) essa Casa.

A nossa Casa é a anti-casa. O inverso do tijolo racional, do cimento solidificante, do concreto estático, da parede segregadora, do teto hermético, do chão geométrico, da porta com trancas, da janela com grades. A negação da casa cartesiana, morada da Razão, essa insustentável, estúpida e inválida habitação.

A nossa Casa é a Utopia, no sentido literal da palavra: o lugar nenhum. Ao mesmo tempo, é um eterno devir de imaginações poéticas, de possibilidades do que foi, do que nunca é e do que pode vir-a-ser. É a continuidade do eu no outro. Declaramos que o ser-em-si-e-para-si está morto. A Vida se dá no ser-com-outro, no ser-para-outro, no ser-entre. E ela não admite racionalização, solidificação, objetificação e reificação. A Casa é a nossa resposta a um mundo no qual a Vida se tornou utópica. A nossa Casa é às avessas: não somos nós quem nela moramos, mas é ela quem em nós habita.

Substitui-se o tijolo pela sensibilidade, o cimento pelo abraço, o concreto pelo beijo, a parede pela poesia, o teto pelo tato, o chão pela arte, a porta pelo outro e a janela pelo olhar. Constrói-se a casa waratiana, a casa nômade. Y que está abierta a todos los que en ella quiseren entrar.

Carta literária e patafísica, lida e passada numa noite fria, em meio a catacumbas, ao inesperado som de um piano…

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Comparações contraditórias



Não passam de palavras. Todas despejadas, desesperadamente, na busca de um consentimento comum. O ser humano não vive só e busca no pensamento – herdado desde os primórdios de nossos parentes macacos – a garantia que não irá morrer em vão. Suas palavras serão digeridas por novos seres pensantes que discutirão, felizes, – ou infelizes, dependendo da virada do século que lhes couber – toda a imensa riqueza por nós consagrada diariamente: Palavras.

Estudaremos os mais vistosos livros e debruçaremos toda nossa vida em cima daquilo que é válido. Este foi selecionado pelas gerações passadas, que por serem passadas são mais vividas e, como nossos avôs, dizem-nos as verdades, sem a necessidade de sermos atingidos por uma faísca qualquer de realidade. Aceitamos, não tão passivamente, é certo, aquilo que foi ditado e utilizamo-nos das armas que temos para contradizer aqueles que descansam em paz: Palavras.

Mas o que resta aos letrados senão continuar com seu legado? Fixamo-nos em patamares de defensores da humanidade, perpetuando as letras, os pensamentos, as especulações para salvar o homem da poeira orgânica. De que serviria a razão se não houvesse seus escudos? A razão nos diferencia de todo o resto universal. Ficaremos, portanto, encarcerados ao eterno universo abençoado das Palavras.

A Arte, rainha das ações humanas, nos salva do vício que nos são as letras. Sua proteção, porém, recaí sobre a mesma doença. Aprecia-se um Da Vinci entre câmeras de segurança máxima, após ter pago o ingresso de entrada. A entrada para o paraíso. Não se pode culpar o artista, por certo, mas toda a sociedade construída que se utilizou da Arte, explorando-a. Mas se Da Vinci renascesse hoje, venderia sua obra?

O que são nossos antepassados brilhantes se não humanos? O que são as palavras consagradas senão mais idéias – amadurecidas, talvez, em conversas de botequim, numa taverna qualquer. O homem se separa de tudo que lhe é comum e cria degraus invisíveis e diferentes graus de importância para tudo o que vive, vê e sente. Somos grandes etiquetadores de vivência, por isso, talvez, o capitalismo tenha dado tão certo em nossa sociedade.

Conseguimos catalogar os melhores escritos, os mais bonitos quadros, as mais válidas teorias. Não foi encontrado, porém, a força mãe que valida todas essas construções. Afinal, o que é verdade? Rumamos perdidos na busca de um caminho que oriente todo o caos criado paulatinamente. Mas que nos garante que não foi sempre assim? As diferenças criadas são base para a convivência humana?

Penso, então, na forma. A boca que emite o som. As palavras podem ser consideradas a melhor forma de revolucionar mundos. A arte da retórica existe e se aplica, tentando convencer o mais cético dos céticos. O beijo, porém, é o ato supremo da boca. Sem dizer nada expressa os sentimentos de forma pura. Não há Palavra no Beijo. O beijo é a sua ausência. Vê-se no beijo um ato puramente humano, que abrange toda a escadaria do explicável, escancarando a porta do inexplicável.

Excluem-se, no entanto, a concomitância dos atos. Fala-se ou Beija-se. O homem vem calcando suas construções na arte da fala. Porém, o beijo desconstrói qualquer argumento racional e abre alas à (ir)realidade. Pode-se tentar teorizar o beijo, mas sua eficácia está longe das palavras. Trata-se, pois, de escolhas. O beijo deve representar toda desconstrução das barreiras concretadas e reforçadas durante os séculos. Deve representar a sensibilidade humana e o reconhecimento do próximo como igual – em todas as suas diferenças.

Opto pela revolução do Beijo, sem conseguir deixar de lado as palavras que me escapam pelos dedos.



Torre de Papel - Sônia Menna Barreto

Torre de Babel - Sônia Menna Barreto


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Abraços continuados (Entre-nós)


Chegou com medo de voar e uma curiosidade que já considerada nata. Sentia-se segura, porém, já que tinha mãos para segurar nos momentos de turbulências quaisquer. Era tudo lindo, e com óculos de turista viu a cidade que chorava em luto. Tentou capturar todos os momentos com fotografias invisíveis que eram registradas na eterna lembrança. Era colorida. Azul, amarela, branca, rosa... Tinha cheiro, cheiro de boas vindas, de revelação. Estava viva.

Ao conhecê-lo, sua timidez era tamanha que balbuciou poucas palavras. Foi assim pelos dias que se passaram. Reconheceram-se, porém, pelo olhar. Os que entornavam eram de uma lealdade infindável. Aquilo não tinha fronteiras, a amizade. Nenhuma língua ou sotaque foi capaz de impedir o entendimento. O olhar bastava. A vontade bastava. A alegria bastava, assim como o sentimento de vida. Estava vivo.

O companheirismo mostrou-se logo e rapidamente construíram-se as ideias da esperança. Não havia censuras e o acolhimento foi completo. Entenderam-se os dizeres, por ora tácitos, pois a comunhão era real. Reinava, soberano, o apetite de mudar, de amar, de viver. Não existe construção vazia em meio tão fecundo. Em papéis coloridos despejaram-se os desejos, em jornais, as lembranças. Muita cor, nas paredes da sala, nos olhares trocados, nos livros espalhados, nas cidades internas. Estavam vivos.

Toda a vida foi pintada nos poemas, nas músicas, na dança, nos abraços e em beijos de cabarés.

Acostumou-se cedo demais, e num piscar de olhos, viu-se de malas prontas. Não era mais a mesma. Despediu-se silenciosamente das cores que lhe marcaram. Silente, viu-se cheia de nós. Nós que nos ligam das diferentes partes desse mundo. Chegou repleta de fios invisíveis, todos agora estendidos. A esperança completava a saudade. Queria dançar o tango que não vira, escorrendo de paixão, harmonia e vida. Estava cheia e sentia, feliz.


Pariendo utopías - Alejandro Costas


sábado, 7 de agosto de 2010

Círculo


Amanheceu doce...talvez agridoce. Foi esquentando o sol que já brilhava alto. Foi queimando a pele de forma leve, marcando, porém, de um vermelho róseo que avivou toda palidez do entorno. Deu forma a todo sentimento e desfez toda razão que entornava as decisões... Era o nascimento daquele que veio repentino, mas que conquistou toda alma e sentimento, tornando imprescindível aquilo que era tão recente. Irresistível, inundou todas as recuadas, toda rejeição e brilhou mais alto, mais forte, numa luz que não cessava.

Brilhou mais forte, como sol ao meio dia, que tosta sem perdão tudo o que anda se esquivando pelas sombras. Perdoou, porém, a pouca água que restava e deixou que a vida continuasse, ainda leve, mas com um respirar mais rápido. Marcou de forma viva, mudando de cor até os cabelos que estavam desbotados. Do prata, veio o amarelo e deste, o vermelho. Iluminou cegamente, daquele brilho que já não se sabe a cor, de um branco neve que desnuda toda a casca. Assim, pude ver o que tinha dentro e era bom. Cutuquei, me atrevi, estava vivo, porém cansado.

Veio o entardecer. E junto com sol, foi se pondo tudo aquilo que era irreal. Mostraram-se as verdades, que já não se escondiam no ofuscar dos olhos. Pesou naquela hora onde os míopes não têm vez e tudo torna-se liquefeito, feito aquarela. Era doce, mais doce do que nunca. Mas pesava nos momentos de distância, em que a agonia destronava a paz, num golpe impiedoso que abalou os mais céticos olhares. Encheram-se de água os olhos que não sabiam chorar. E a dor veio devagar se instalando silenciosamente, como que prevendo o que estaria por vir.

Fez-se o mais absoluto silêncio, de um vazio que não se acreditava, surgindo forte e desaparecendo, deixando mais vazio. O tempo parou para que todos pudessem observar tal perda. O mundo parou para que o ruído rotacional cessasse por respeito ao rebento que partiu. Não se tinha mais nada, e do nada brotou o desespero do mais profundo sentimento já sentido. A dor, sua amante de longa data, não perdeu tempo e se apossou do que podia, preenchendo o vazio que se arrastou pela madrugada fria. Foi a vida que deixou sua marca naquele que deixara de viver.

Num instante, porém, um brilho azul surgiu. E preencheu, num ritmo imperceptível, a esfera que se esvaziara. Cravou-se no peito as letras que fizeram tanto sentido outrora. A dor se atenuou deixando um brilho de esperança, insistente como cada amanhecer. Do silêncio, fizeram-se palavras espaçadas, doloridas, no entanto, entre gestos esparsos de carinhos, quase inconsequentes. Juntaram-se cacos de riquezas aprendidas, e dos restos viu-se o puro amor. Nunca esquecido, nunca apagado. Apenas calado.


La Sente du Père Jean - Paul Gauguin


segunda-feira, 19 de julho de 2010

Acúmulo


Talvez me adapte melhor no preto, na escuridão. Essa luz, de olhar nos olhos, de cegar, incomoda os pensamentos que vêm escuros, temendo o claro. São tantos os que temem a luz. Temo o que não conheço, logo, toda a exatidão e clareza me são estranhas. Não está na pele... Há tanto que não sei o que é certo. Talvez o que pensei que fosse, era apenas uma teoria colocada que, afastada pelos sentimentos – fortes e robustos, malvados, até, pois dominam encoleirando-nos –, se desfez tão rápido que me tirou qualquer sombra de certeza, qualquer linha reta, transformando meu mundo numa bola gigante, tal como ele é, tal como foi feito.

O que consigo fazer agora é despejar as tantas palavras desconexas que me foram ensinadas desde minha juventude. E que bobagem é essa? Foram-me ensinadas desde meus primórdios, visto que não sou nada além de uma continuação de carne, pêlos e um punhado de pensamentos, estes utilizados para a tentativa de construir o certo. Se precisamos construir o que não está pronto e acabado, nunca poderemos saber se a obra toda é correta. Se está de pé, suporta, está apropriada. Se cai, desaba, aprende-se com o erro, continuando aquela construção de tanta argamassa que sufoca.

Prefiro o que cai. O que está de pé vai cair um dia, ora, se não foi estudada as leis da gravidade, outra construção que ainda está sendo sustentada por suportes fortes, e talvez até caia como a maçã que lhe serviu de inspiração. Se vai cair, prefiro que seja na construção para não desabar com o tudo dentro. Tantas vezes cai. E dói se quebra muito. A dor é um sentimento engraçado. Nem sei mais como é, a gente se acostuma, acha que é normal e fica assim. A dor é engraçada por que refutamos e até ela, também forte e robusta, deve se afinar depois de tanto preconceito.

Eu me prendi numa construção que não tem fim. Sim, exatamente como todas as outras. Mas como sou eu quem está presa, tenho a impressão de infinitude única, como se todo o universo fosse só meu, como se todo o sentimento fosse só meu. As histórias se repetem tanto que fica chato viver, é só copiar. Então finjo estar sozinha, sem mais nenhuma história, escrevendo um drama inédito, inexplicável, inexorável, inefável. Jogo toda essa jurisprudência fora, esses exemplos de medo, essas construções prontas em que me comparo para ver se dá certo. E novamente chego à maldita certeza, que não é sentimento forte e robusto, pois me é muito miúdo dentro de mim.

O medo é o mais vistoso. É o filho primogênito, aquele que foi protegido contra todas as pragas, com sangue de novilho puro em portas de bambu. Ele sobreviveu às sete pragas, à queda das antigas civilizações, à era das revoluções, a toda história. Os que o venceram, viraram ícones no museu de cera, ou em qualquer quadro pintado, empoeirando num museu longe daqui. Mas o medo, esse não precisou de estátua, pois vive em todos nós. Em especial a mim (e não poderia ser de outra forma, visto minha explícita alienação), foi cultivado graciosamente e na época da matança, foi perdoado e adotado, pois era gordinho de dar dó.

Ele, com seus braços fortes, ajudou-me a construir minha muralha que tem ferro, dos mais fortes. Todos os que batem se machucam e eu vejo tudo por cima da escadaria. Rolo de rir pelos degraus construídos, escondendo a dor – que já é de casa – de estar aprisionada. Rio o riso dos desesperados. Aprendi, porém, a controlá-lo e, depois de alinhar meu sorriso, utilizo o desespero como arma. Mas tudo me pesa, são tantos os armamentos. E reflito, então, se me é válida a leveza, abandonando tudo. O que vale, o peso ou a leveza? Rio, rio. Nunca nem li o livro! Não me parece ser tão pesado assim.


Temptation of Saint Antony - Salvador Dali


terça-feira, 1 de junho de 2010

Libertação



Era uma mulher.


Via-se no espelho nua e confirmava a afirmação repetidas vezes. Cada pedaço de seu corpo gritava o feminino, escancarando sentimentos. Suava progesterona. A roupa, separada no pé da cama, fora escolhida cuidadosamente. Os sapatos vermelhos de salto alto ressaltavam o formato alongado de suas pernas. A meia calça protegeria do frio e se tornaria um atrativo. A saia, meticulosamente costurada para cobrir a porção certa de carne, caia-lhe perfeitamente.

Era uma mulher.

Abotoou a blusa pacientemente. Cada botão trazia um novo pensamento. Cansada dos problemas gritando em sua cabeça, ligou o rádio sorteando a música. Num ritmo dançante cobriu seus lábios com vermelho sangue e olhando o resultado final, no espelho manchado pela umidade dos demorados banhos, concluía:

Era uma mulher.

A bolsa preparada pelas precauções já esperava perto da porta. Seus pensamentos fluíam num redemoinho gingante, misturando-se com perfumes e lembranças. Sabia que aquela não era a melhor saída, mas precisava provar num ato de imaturidade toda aquela pesada maturidade. Saiu sem rumo e sem relógio. Não viu a hora passar.

Amanheceu.
O sol batia tímido e o despertador tocava esquecido. Na casa, o cheiro de noite ainda pairava leve, desaparecendo. Os rastros de choro se misturavam com maquiagens corretivas. Quando chegou, o despertador já havia cessado as exaustivas tentativas do despertar vazio. Sentia-se como a casa antes de sua chegada, vazia. O choro então se rompeu com o silêncio. Estava só e chorava, sozinha.

Como uma criança.


Libertação - M. C. Escher


segunda-feira, 17 de maio de 2010

Despejos


I

Em retas linhas sigo sem sabe o que sentir acumulando desde já o desespero do incerto pouso em braços largos agasalhando-me do amor alheio que espero retribuir. O medo da frieza domina as miniaturas homéricas dos sentimentos que tenho dentro de mim congelando a mais quente brasa florescente-radioativa da paixão que tento reproduzir incansavelmente em palavras e gestos não interpretados da maneira certa por serem tão subjetivos intrínsecos ao meu ser. A morte dos 200 anos já perdeu seu efeito e as suposições não fazem mais sentindo deixando-se enquadrar em diálogos repetitivos para entender aquilo que não é meu o que nunca deveria ser entendido e sim ser guardado como relíquia numa caixinha incrustrada de rubis pontiagudos. O cristalino já se embaça o embaraço maior é todo meu em todas as áreas possíveis de se analisar confundo os mais analíticos e impassíveis divãs insaciada por aquilo que não sei descrever e brota rompendo as mais túrgidas células de um planta que viu o sangue correr. Da luz não vem meu alimento necessário e da sombra retiro o meu fechar de olhos forçado obrigando o meu eu a se retirar do externo caindo os sorrisos moldados um por um feitos em laborátorio. Como um embrião sem células tronco sou pequena e imoldável nascida para aquilo que nasci e que nunca descobri e desconfio que ninguém saiba mas sou minúscula não entendendo o forçar da felicidade tão ligado ao mundo que piso. Piso sem sapatos nos tacos empoeirados protegidos da friagem onde todo verme encontra seu túmulo. Recolho-os por piedade e faço de mim um cemitério daqueles inanimados e tento revivê-los da frustração que passaram. Derrotada enxergo-me verme e rastejo em busca de cemitérios novos mas quando percebo já suguei a força vital de tantos outros que morreram em minha memória.

II

Como gelo seco, que queima de um frio incessante. Que arde feito chama rígida de sentidos estáticos. Meus sentidos estáticos denunciam o mundo, fora de mim, como uma câmera de gás que queima o mundo que morre frio, duro feito pedra. Sendo carne venço-me em sentidos não decifráveis. E como cifra, traduzo o que sinto em palavras tão vagas e tão julgáveis. Assim, abro espaço para as temíveis críticas de cabeças ocas como a minha. Despejo então essa lava endurecida para esvaziar-me de mim. Aqueço ao saber que meu rastro está traçado em vão e percebo a invalidez da vida. Como em programas de adolescentes, finjo ser grande e madura. Como fruto preste a apodrecer ao lado dos tantos outros que caiu feito pedra, duro, frio. Minha câmera frigorífica me impede de cair, então vivo imatura e verde, feito e.t. Meus códigos já se venderam para um mundo que inventei. Eu mesmo quem fiz a troca, em que fui o prejuízo. Ao despejar combino as palavras em tons legíveis para qualquer outrem ler. E ao ler, me perco em lembranças inventadas e terceirizo-me, como couro e carne. Fui consumida por tantos outros que não conheço e exibo o couro estampado. Cansei.


Narciso - Caravaggio


quarta-feira, 5 de maio de 2010

Vida




















É câncer,
mas veio do amor.
Se instalou assim, devagarzinho no colo possuído
e dominou tudo... Quanto amor!
Foi a expressão máxima da dicotomia,
que realizou toda sua dialética
num jogo de vida e morte.

Mas sem isso
não teria nada.
Sem dor não se sente o amor
tá tudo contraposto num atrito sem fim
numa dependência eterna.

E quando findar
que não se acabe tudo
a cicatriz perpetua a dor,
e vai mantendo o amor
E quanto amor!
Vão te tirar esse câncer
vão arrancar tudo, sim
mas não deixe arrancarem o amor
este já dominou tudo
numa metástase sem volta.

Sem a morte, a vida não existiria
viva, menina, toda essa sua loucura transbordante
todas suas dúvidas elucidantes,
toda vida que te existir.
A dor que te vier, viva como se fosse a mais profunda
pois daí só pode sair felicidade
Sai sorrateira iluminando toda fresta que lhe mostrarem
inundando todo seco, afogando toda escuridão.

Acredita
você tem tudo pela frente
e não é agora que vai acabar, não
a vida está aí
te mostrando as dores para você se apoiar
e poder desfrutar uma monstruosa alegria

uma eterna paz.


Árvore da Esperança - Frida Kahlo

domingo, 2 de maio de 2010

III - da rua


– Você é filha minha sim. Sua mãe é preta de asfalto. E você nasceu assim mulatinha por causa de seu pai, mesmo não sabendo quem foi que me abençoou com você, sorte, foi sim. Mas o que sua mãe mais quer, é que você possa escolher o seu caminho. Não quero teu destino traçado por ninguém não, pode dar azar. Você vai decidir, minha riqueza, não vai viver ao deus-dará. Eu tive muita sorte, mas muito azar também... Foi essa profissão mal-dita que escolheram pra mim. Você daria até futuro aqui, esse teu rebolado mulato é de ouro. Mas você só segue se escolher, e não vai escolher não. Tem muita coisa melhor nesse mundo e você vai rodeá-lo todo pra contar pra sua mãe. Eu vou esperar, vou sim. Sua mãe teve muita sorte e você vai ter também, porque filha minha você é sim.


A negra - Tarsila do Amaral