Primeira Sessão: Despejo
inicial
Explico,
em primeiro lugar, que preciso de plateia. Não que isso transpareça abertamente,
acho que consigo esconder bem esse traço de personalidade na minha relação com
as pessoas. Mas preciso fantasiar um pensamento alheio sobre mim. Falem bem,
falem mal, falem de mim, é o que dizem. E se dizem, imagino. Claro que finjo
ignorar, num ar quase blasé, de emancipação absoluta dos me rodeiam. Mas não é
verdade. Daí alguns fatos da minha vida, alguns poemas, alguns e-mails, os
blogs – todos abandonados, que me fazem ter cena pra plateia que inventei. Mas toda essa minha
coragem de me expor, de viver o perigo, mesmo que abstrato, se dá em saltos. Vem um impulso,
alavanca, estou no alto e depois, bum! Lá no fundo, estatelada. Fico cor de
rosa, sabe, não dá pra esconder.
Lembro-me
de alguns outros momentos que formaram peças pro meu teatro. Assim, em lapsos
de insanidade, ou de sanidade – não saberia bem dizer, dou esses estalos de
vida que viram histórias. E conto, rindo-me, para que me chamem de louca, para
que desacreditem, para que me admirem. Esse teatro todo, porém, cabe
esclarecer, tem plateia seleta. Escolho as pessoas que quero encantar.
Esse
texto, por exemplo, foi meticulosamente pensado no banho, já imaginado num
e-mail encaminhado para você, até então desconhecido, o tal psicólogo da minha
irmã. Você foi o selecionado para ler esse texto, montar alguma suposição sobre
mim para que eu possa me deliciar com a expectativa da sua reação. Quem sou eu
na sua cabeça? Claro, sempre vêm as ideias posteriores também... Talvez tudo
isso dê num livro, mas outro problema que tenho é: minhas ideias não saem do
papel. Muitas, na verdade, ficam apenas na cabeça, ou espalhadas por aí, porque
eu compartilho tudo no ouvidos das pessoas. Algumas, inclusive, as realizam,
colocando em prática o que pensei, e eu fico aqui, chupando o dedo. Devo ter
lido isso em algum horóscopo, preciso me focar.
Pelo
menos as que estão no papel foram escritas e segundo, ou terceiro, ponto
importante sobre mim: adoro escrever. É quase um desafio para comigo mesmo. Que
saudade estava de me despejar sobre o papel. São nesses momentos de agonia
profunda que as palavras vêm e vão se formando, em ciranda, na minha cabeça.
Primeiro medo: Para escrever terei de viver em eterna agonia? Não que eu não
goste de paz, por sinal, é a sina das pessoas, não é? É a rotina, porém, que me
mata... Antes ficar no sofá, deitada, olhando pra parede sem sair do lugar, num
mormaço de vida, que queima, mas não queima, do que viver na rotina insana que
nos impede de pensar. Eu não consigo mais pensar. Na verdade, eu só consigo
pensar, no mundo, na revolução, nas estruturas. A poesia secou no meio desse
deserto cinza de concreto, deserto de sentimentos. Vai ser assim pra sempre?
Não
pensei que fosse ter tanto medo assim na vida. Nunca me contaram que era assim.
Mas de repente acordei e me vi dentro de uma história que parecia não ser
minha! Como havia parado naquele curso? Porque ainda usava aquelas roupas? Me senti subindo de um longo mergulho para buscar
ar na superfície. Estou arfando até agora sem saber onde é a beira e não, eu
não sei nadar. Que medo de mergulhar outra vez. Mais medo ainda de buscar ar mais
pra frente, com dois filhos, um trabalho, um marido, uma casa. Pânico!
Tudo
isso (o texto, a reflexão última, o banho) me faz pensar o quanto guardo em mim
e como eu não me abro nunca. Parece que há tempo não me vasculho por dentro!
Afinal, quem eu sou? Porque guardo tantos papéis nos meus armários, porque
tenho livros que nunca li? Fui construindo um mundo fascinante, repleto de recortes
coloridos, que foi deixado de lado pela minha vida. A vida não pode ser
fascinante sempre? Não tenho espaço para exercer o meu eu.
Pode
ser culpa da mídia, da internet, do Facebook. Fico horas vendo as vidas – nem
sempre fascinantes – nos perfis alheios. Me furto ao mistério, à capa do meu
filme preferido ou do que parece ser cult,
à foto artística, ou tosca, você pode escolher. Só sei que faz tempo que não
tenho tempo pra mim, não tenho tempo de escolher minha leitura, de fazer minhas
colagens, de escrever! De escrever... Nem sei mais montar a ciranda, as
palavras tropeçam todas, se amontoam, perdeu o glamour. Não que se trate de
glamour, mas tinha um drama, sabe? Um tom ácido, honesto, que gostava tanto. E
quando leio os textos antigos, meu Deus, parece que eu não mudei nada! Parece
que o meu eu interior continuou lá, como um quartinho bagunçado, e a vida
passou e quando eu abro a porta do quarto, as coisas ainda estão lá entulhadas,
um pouco mais empoeiradas.
E
nessa vida que passou, me sinto uma casa vazia. Uma sala de estar com a luz
apagada. Dessas salas antigas, com poltrona listrada, lareira e abajur de mesa.
O pêndulo do abajur ainda balança, foi recente essa escuridão, essa penumbra.
Não estou dizendo que não tenho momentos de felicidades. Muito pelo contrário,
meu sorriso é legítimo. Não estou dizendo que também não ame. Se não amasse,
toda essa reviravolta não me seria tão dolorida e continuaria sentindo a fome
que sempre senti. Hoje, meu estômago grita pelo vazio, e a fome tornou-se de
vida, da vida que imaginei. Me pergunto o porquê desses lapsos de realidade (ou
de irrealidade) que me desconstroem a vida construída, não imaginada. Isso é
tão geminiano, tão pendular. Me disseram que meu arco vai mais longe...
Mas
onde ele vai cair?
Imagem: Corpos presentes - Antony Gormley